RELATO DE MAHOMMAH GARDO BAQUAQUA

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O trecho documental abaixo é o único relato conhecido de um sequestrado, torturado e escravizado pelos portugueses que sobreviveu a trágica travessia do Atlântico em um "tumbeiro" e vivenciou imenso horror na lavoura de escravizados no  Brasil do século XIX.  Trata-se de um relato raro, narrado em primeira pessoa (e terceira pessoa) que serviu inclusive para a campanha abolicionista em curso nos Estados Unidos. São escassos relatos da mesma natureza, pois infelizmente é costume em nossa história as elites que protagonizam horrores contra o povo que oprime, apagarem os registros que denunciam a sua crueldade.

RELATO DE MAHOMMAH GARDO BAQUAQUA SEQUESTRADO NA ÁFRICA E ESCRAVIZADO EM INÚMEROS LUGARES DAS AMÉRICAS, COMO PERNAMBUCO, RIO DE JANEIRO E REPRESENTA O ÚNICO RELATO EM PRIMEIRA PESSOA CONHECIDO ATÉ O MOMENTO SOBRE A TRAJETÓRIA DE UM AFRICANO ESCRAVIZADO EM TERRAS BRASILEIRAS



DIVERSIDADE
Seu nome era Woo-roo, vinha de Zoogoo, e fora escravizado há cerca de dois anos... Perguntou-me sobre seus amigos em Zoogoo... olhou para a minha cabeça e observeu que meus cabelos estavam cortados do mesmo jeito como quando estávamos juntos em Zoogoo e eu concordei. Talvez caiba notar aqui que, na África, as nações das distintas partes do território têm seus modos diferentes de cortar o cabelo e são conhecidas, por essa marca, a que parte do território que pertencem. Em Zoogoo, o cabelo de ambos os lados da cabeça é rapado e, em cima da cabeça, da testa até atrás, deixa-se o cabelo crescer em três mechas redondas que ficam bem compridas, mantendo-se os espaços entre elas raspados rente à cabeça. Para alguém familiarizado com os diferentes cortes, não há dificuldade em reconhecer a que lugar um homem pertence.

Woo-roo parecia muito ansioso para que eu permanecesse em Gra-fe mas meu destino era outro. Esta vila situava-se à margem de um grande rio. Esta vila situava-se à margem de um grande rio. Depois do café da manhã, levaram-me ao rio e colocaram-me num barco (...) O barco em que os escravos foram colocador era grande e impulsionado por remos, embora tivesse velas. (...)

TRATO / Terror psicológico / Processo de desumanização / Transformação em mercadoria
Enquanto estivemos nesse lugar, os escravos foram enjaulados, colocaram-nos de costas para a fogueira e deram ordenas para não olharmos à nossa volta. Para se assegurarem de nossa obediência, um homem se postou à nossa frente com um chicote na mão pronto para açoitar o primeiro que ousasse desobedecer, outro homem circulava com um ferro quente e nos marcava como as tampas de barril ou qualquer outro bem ou mercadoria inanimada (...) fomos acorrentados uns aos outros e amarrados com cordas pelo pescoço e assim arrastados para a beira-mar (...) Temia por minha segurança e o desalento se apossou quase inteiramente de mim (...) quando chegamos à praia (...) como eu desejei que a areia se abrisse e me engolisse (...) O leitor pode imaginar, mas qualquer coisa parecida com um esboço de meus sentimentos não seria, nem de longe, um retrato fiel. Escravos vindos de todas as partes do território estavam ali e foram embarcados.

NAVIO NEGREIRO
Fomos arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de lado e as mulheres de outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar em pé, éramos obrigados a nos agachar ou a sentar no chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos. Ficamos desesperados com o sofrimento e a fadiga.

Oh! A repugnância e a imundície daquele lugar horrível nunca serão apagadas da minha memória (...) Meu coração até hoje adoece ao pensar nisto. (...) A única comida que tivemos foi milho velho cozido. Não posso dizer quando tempo ficamos confinados assim, mas pareceu ser muito tempo. Sofríamos muito por falta de água, que nos era negada na medida de nossas necessidades. Um quartilho por dia era tudo que nos permitiam. Muitos escravos morreram no percurso. Houve um pobre companheiro que ficou tão desesperado pela sede que tentou apanhar a faca do homem que nos trazia água. Foi levado ao convés e eu nunca mais soube o que lhe aconteceu. Suponho que foi jogado no mar.

Quando qualquer um de nós se tornava rebelde, sua carne era cortada com faca e o corte esfregado com pimenta e vinagre para torná-lo pacífico. Como os demais, fiquei muito mareado de início, mas nosso sofrimento não causou preocupação alguma aos nossos brutais donos. Nosso sofrimento era da nossa conta. Não tínhamos ninguém com quem pudéssemos compartilhá-lo, ninguém para cuidar de nós ou até mesmo nos dizer alguma palavra de conforto. Alguns forma jogados ao mar antes que o último suspiro exalasse de seus corpos; quando supunham que alguém não iria sobreviver, era assim que se livravam dele. Apenas duas vezes durante a viagem nos permitiram subir ao convés para que pudéssemos nos lavar – uma vez enquanto estávamos em alto mar, e outra pouco antes de entrarmos no porto.

Chegamos em Pernambuco, América do Sul, de manhã cedo e o navio ficou zanzando durante o dia, sem lançar âncora. Ficamos sem comida e sem bebida o dia inteiro e nos foi dado a entender que deveríamos permanecer em silêncio absoluto, sem clamor algum, senão nossas vidas estariam em perigo. Mas quando ‘a noite lançou seu manto de trevas sobre a terra e o mar’, deitaram ferros e nos permitiram ir ao convés para sermos vistos e manuseados por nossos futuros senhores, que vieram da cidade. Desembarcamos há algumas milhas da cidade, na casa de um fazendeiro, que era usada como uma espécie de mercado de escravos. O fazendeiro tinha uma grande quantidade de escravos e não demorou muito para que eu o presenciasse empregando livremente seu chicote contra um rapaz. Essa cena causou-me uma impressão profunda pois, é claro, imaginei que em breve este seria me destino. E oh! Não tardou, ai de mim, para que meus temores se realizassem.

Quando desembarquei, senti-me grato à Providência por ter me permitido respirar ar puro novamente, pensamento este que absorvia quase todos os outros. Pouco me importava, então, de ser um escravo, havia me safado do navio e era apenas nisso que eu pensava. Alguns escravos a bordo sabiam falar português. Haviam vivido no litoral com famílias portuguesas e faziam o papel de intérpretes. Não eram colocados no porão como nós, mas desciam ocasionalmente para nos dizer uma coisa ou outra.

Estes escravos nunca sabiam que seriam despachados até o momento em que eram colocados a bordo do navio. Permaneci nesse mercado de escravos apenas um dia ou dois, antes de ser vendido a outro traficante na cidade que, por sua vez, me revendeu a um homem do interior, que era padeiro e residia num lugar não muito distante de Pernambuco.

Quando um navio negreiro aporta, a notícia espalha-se como um rastilho de pólvora. Acorrem, então, todos os interessados na chegada da embarcação com sua carga de mercadoria viva, selecionando do estoque aqueles mais adequados aos seus propósitos, e comprando os escravos da mesmíssima maneira como se compra gado ou cavalos num mercado. Mas, se num carregamento não houver o tipo de escravo adequado às necessidades e desejos dos compradores, encomenda-se ao Capitão, especificando os tipos exigidos, que serão trazidos na próxima vez em que o navio vier ao porto. Há uma grande quantidade de pessoas que fazem um verdadeiro negócio dessa compra e venda de carne humana e que só fazem isso para se manter, dependendo inteiramente desse tipo de tráfico.

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