Kabengele Munanga - Nosso racismo é um crime perfeito
Por Nilva de Souza
O antropólogo fala sobre o mito da democracia racial
brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da educação no
combate ao preconceito no país.
Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria
(A entrevista foi publicada na edição 77, de agosto de 2009)
Fórum - O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter
alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um
país bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como
foi essa mudança para o senhor?
Kabengele - Essas coisas não são tão abertas como a gente
pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não
se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas
coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a descobrir que você entra em alguns
lugares e percebe que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não
é como “nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por
ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros
da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.
Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em
antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questão racial.
Foi através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia
problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era
uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João Batista Borges
Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum lugar em que está
sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As pessoas olhavam mesmo,
inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque
é uma família inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um
filho mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de
curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia.
Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram.
A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber
o porquê e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da
discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio
Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a
questão. Mas o problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as
crianças não. Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu
caçula é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa,
se depararam com a polícia?
Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe,
onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na
escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas
que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição
social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser
suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas
vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando
comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela
polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi
instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas,
senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de
ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos
até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e
criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do
seu corpo não indica isso.
Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente
social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui
também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o
tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas
que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população negra, e
entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no
Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do
apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no
Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é
velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos
vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.
Revista Fórum - Quando você tem um sistema como o
sul-africano ou um sistema de restrição de direitos como houve nos EUA, o
inimigo está claro. No caso brasileiro é mais difícil combatê-lo...
Kabengele - Claro, é mais difícil. Porque você não
identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A
primeira reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para
implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade racial. Aqui
é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As
leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime
inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com
essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A
população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem
para proteger.
Revista Fórum - Aqui no Brasil há mais dificuldade com
relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?
Kabengele - Tem segmentos da população a favor e contra.
Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a própria
Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos
tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma
inconstitucionalidade. Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a
ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar
pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos
brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano, então seria
difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota.
Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação
antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os
negros. Senão não teria discriminação.
Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país
que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir
uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua
afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite,
o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o
que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas
cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que
era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era
afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite
existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa
beneficiar uma grande parte da população brasileira.
Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos
EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro.
No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas
razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das
cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O
ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa
não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é.
Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É
necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No
entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do
Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre
negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter
uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas.
O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas
que estão contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na
sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais
racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos
falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como
você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão
econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria
pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar
muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação.
Os que são contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de
diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento
das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que
aconteciam nos EUA.
Fórum - Que é o argumento do Demétrio Magnoli.
Kabengele - Isso é muito falso, porque já temos a
experiência, alguns falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em
80. Já ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais?
Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas
pichações, "negro, volta pra senzala". Mas isso não se caracteriza
como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população, projetar
conflitos que na realidade não vão existir.
Fórum - Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo
anulação das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a
ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao
sistema de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?
Kabengele – Tenho a impressão que as posições ideológicas
não são explícitas, são implícitas. A questão das cotas é uma questão política.
Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o
argumento desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a
questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque
nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas
querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com
ele, que o problema é só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas
porque seria introduzir uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles
ignoram que os brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam
esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.
Fórum – Mas isso não é um cinismo de parte desses atores
políticos, já que eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o
Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo
socioeconômico?
Kabengele - É interessante, porque um país que tem problemas
sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de
transformação da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de
mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com
a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no
Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública mudou em algum
lugar? Não, mas o discurso continua. "Ah, é só mudar a escola
pública." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola
particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como
autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e
lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas
a coisa só fica no nível da retórica.
E tem esse argumento legalista, "porque a cota é uma
inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil". Há juristas que
dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas
tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas
políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é
importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas.
Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência
universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento
igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é
curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e
de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida
as pessoas no mesmo nível.
Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no
ponto de partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um
fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual
o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima
qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do
mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota
superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8,
esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa
nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao
aluno, ele não vai decepcionar.
Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são
aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas
terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o
tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as
quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele
me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou
o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco
não-branco que pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três
páginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um
charlatão acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um
século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu
nada do que eu escrevi.
A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a
dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua
identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente
por causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica o
processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar ambivalentes.
Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar sua negritude, e não
rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços
no Brasil e que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não
tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três
frases e fez a acusação dele no jornal.
Fórum - O senhor toca na questão do imaginário da democracia
racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito...
Kabengele - O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode
ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa
ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e
acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores
lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode
ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para
poder reproduzi-la.
Há negros que introduziram isso, que alienaram sua
humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de
ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e
acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa
ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar
também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade
e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan
Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter
preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é
preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de
enforcado não se fala de corda.
Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer
que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que
não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem
identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa
branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim,
para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em
flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso.
Se fosse um americano, ele vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um
negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei
de alugar". Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas
práticas racistas, pra ser uma coisa explícita.
Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em
1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de
80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "você já
discriminou alguém?". A maioria disse que não. Significa que há racismo,
mas sem racistas. Ele está no ar... Como você vai combater isso? Muitas vezes o
brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "você que é complexado, o
problema está na sua cabeça". Ele rejeita a culpa e coloca na própria
vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito,
porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não
tem nenhum problema.
Revista Fórum - O humorista Danilo Gentilli escreveu no
Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol
que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos
dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando. Ele
dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro
como algo de quem é racista.
Kabengele - Faz parte desse imaginário. O que está por trás
dessa ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai
casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua
loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do
racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que
ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação.
Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada
a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são
por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha
burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.
Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas
identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do
lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros
casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando um preconceito
que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na
vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos
mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com
aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que
acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma
provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.
Fórum - É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua
piada com um argumento muito simplório: "por que eu posso chamar um gordo
de baleia e um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa.
Kabengele - É interessante isso, porque tenho a impressão de
que é um cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história.
São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a
essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que
assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar
feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro,
assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia
a história do orgulho negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco
porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve
ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.
Fórum - O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e
recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso
de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as
pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que
no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem
se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse
tipo de situação?
Kabengele - Isso é uma prova daquilo que falei, os
brasileiros são educados para não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros
países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune
mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro
que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino
no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas,
esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode
educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles
são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por
que a violência simbólica é aceita a violência física é punida?
Fórum - Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que
determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os
professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a questão
racial?
Kabengele - Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas
que acham que isso também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham
que, sendo a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar
a cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única
história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão
nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no Brasil.
Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é
propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade,
do ensino da diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os
nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade
na escola.
O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque
é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus
chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última
onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes
formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a
gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da
África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro.
Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista
da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram os
africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso
que aconteceu. A história da escravidão é uma história da violência. Quando se
fala de contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do
outro de uma maneira positiva, isso ajuda.
É por isso que a educação, a introdução da história dele no
Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que
saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho
escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Além do
mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que simplesmente
aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos
Palmares, que durou quase um século. São provas de resistência e de defesa da
dignidade humana. São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do
patrimônio histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que
conhecer essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros.
Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens.
Em primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a diversidade.
Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história
do negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos alunos?
Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas e
civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar os
educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por onde
começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo, material
didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o
processo pode funcionar.
Fórum - Outra questão que se discute é sobre o negro nos
espaços de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como
trabalhar contra isso?
Kabengele - O que é um país democrático? Um país democrático,
no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de
poder. Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no
Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado. E ainda
os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país
democrático. O fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou
quase não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há
alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a
representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê?
Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos
desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras
universidades públicas, quantos professores negros tem, começando por minha
própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos
professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com
a Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a
entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não
entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que
era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio
do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez
pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for
para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você
vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais
racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?
120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade
social para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é
geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou
encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade.
E isso passa por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como
explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós
comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa
mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já
estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se
mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos
racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos
racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos
racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema
da sociedade.
Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela
mídia à questão racial?
Kabengele - A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse
discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por
alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo
fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são
muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do
negro na escola.
Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção
da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve
matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso.
O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie
Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O
silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque se falar
sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se
ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa,
no meu ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito.
Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da
Conferência Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de
brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das
Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunião
pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil.
Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma
coisa pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um
contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio
que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não dizer muita
coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou.
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Lilia Schwarcz |
A antropóloga Lilia Schwarcz
discute a ligação entre ciência e racismo no Brasil do século passado e de como
essas teorias ainda permanecem entre nós
Carlos Haag
Edição Impressa 134 - Abril 2007
http://www.revistapesquisa.fapesp.br/index.php?art=3186&bd=1&pg=1&lg=
Lilia Moritz Schwarcz
“Quando vós nos feris, não
sangramos nós? Quando nos divertis, não rimos nós? Quando nos envenenais, não
morremos nós? E se nos enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se somos como
vós em todo o resto, nisto também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um
cristão, qual a humildade que encontra? A vingança. Se um cristão enganar um
judeu, qual deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão? A vingança,
pois”, fala Shylock, o polêmico personagem de O mercador de Veneza, de
Shakespeare. Longe de defender a violência, o bardo retrata um sentimento,
infelizmente tão humano, embora de “cientificismo” newtoniano, da
“ação-reação-ação” etc. quando a questão são as supostas diferenças raciais. A
ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção da
Igualdade Racial, disse, em entrevista recente, que “não é racismo quando um
negro se insurge contra um branco, porque quem foi açoitado a vida inteira não
tem a obrigação de gostar de quem o açoitou”. Concordar ou não concordar?
O dilema, hamletiano, é dos mais
complexos. Como, aliás, é tudo o que se refere à raça, em especial num país
como o Brasil. Afinal, aqui, “ninguém é racista”, como determinou, em 1988, no
centenário da Abolição, uma pesquisa cujos resultados eram sintomáticos: 97%
dos entrevistados afirmaram não ter preconceito. Mas, ao serem perguntados se
conheciam pessoas e situações que revelavam a discriminação racial no país, 98%
responderam com um sonoro “sim”. “A conclusão informal era que todo brasileiro
parece se sentir como uma ‘ilha de democracia racial’, cercado de racistas por
todos os lados”, avalia a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, do Departamento de
Antropologia da Universidade de São Paulo, autora, entre outros, de Retrato em
branco e negro, O espetáculo das raças e As barbas do imperador. Democracia
racial ou inferno racista? “O primeiro procedimento é destacar o caráter
pseudocientífico do termo ‘raça’, mesmo porque seu sentido é diverso de lugar para
lugar e suas determinações de caráter biológico têm efeito apenas relativo e
estatístico. Não há como imputar à natureza o que é da ordem da cultura: a
humanidade é uma, as culturas é que são plurais”, analisa Lilia.
Curiosamente, o racismo é um tema
nascido com a modernidade, que “apesar de tão globalizada, encontra-se marcada
por ódios históricos, nomeados a partir da raça, da etnia e da origem”. Somos
“quase brancos, quase pretos”, como cantam Caetano e Gil, em Haiti, e, por isso
passamos nossa história a discutir esse “quase”. “A raça, no Brasil, sempre foi
um tema usado (e abusado) por ‘pessoas’ fora do estatuto da lei. Nessa
sociedade marcada pela desigualdade e pelos privilégios a ‘raça’ fez e faz
parte de uma agenda nacional pautada por duas atitudes paralelas e simétricas:
a exclusão social e a assimilação cultural. Apesar de grande parte da população
permanecer alijada da cidadania, a convivência racial é, paradoxalmente,
inflacionada sob o signo da cultura e reconhecida como ícone nacional.” Isso
não é de hoje.
“Passado o secular período do
escravismo, entre 1890 e 1920, a elite brasileira se debateu com a angústia
quanto às origens genéticas mestiças de nosso povo e de sua capacidade de
servir de base para o tão sonhado desenvolvimento econômico, político e
cultural. Balizados na interpretação racista, postas as origens mestiçadas do
povo brasileiro, seríamos incapazes ao desenvolvimento e ao progresso”, escreve
o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Marcelo Paixão, em seu artigo “O justo combate”. O conceito de “raça” já chega
ao Brasil “fora do lugar”, necessitando do “jeitinho brasileiro” para
funcionar. “Se falar na raça parecia oportuno, o tema gerava paradoxos:
implicava admitir a inexistência de futuro para uma nação de raças mistas como
a nossa.
A saída foi preconizar a adoção
do ideário científico, porém, sem seu corolário teórico, ou seja, aceitar a
idéia da diferença ontológica entre as raças sem a condenação à hibridação, já
que o país, a essas alturas, estava irremediavelmente miscigenado”, observa
Lilia. “Incômoda era a situação desses intelectuais, que oscilavam entre a
adoção de modelos deterministas e a verificação de que o país, pensado nesses
termos, era inviável.” Pior: modelo de sucesso na Europa de meados dos
oitocentos, as teorias raciais chegaram tardiamente ao Brasil. “Raça, desde
então, aparece como um conceito de negociação, sendo que as interpretações
variavam.”
O debate anacrônico se deu em
vários territórios: as escolas médicas de Recife e do Rio de Janeiro (onde
nasceu a “medicina política”), as faculdades de direito, o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, os museus etnológicos e a literatura, mesmo a de
ficção. Representante médico, o maranhense-baiano Nina Rodrigues assumia um
darwinismo racial que preconizava a separação das raças: a seleção natural
daria cabo, no processo competitivo, das inferiores, que seriam postas sob
controle ou eliminadas. Com ele, a medicina adquiriu foros políticos na
medicina legal: “Os exemplos de embriaguez, alienação, epilepsia, violência
etc. passaram a comprovar os modelos darwinistas sociais em sua condenação do
cruzamento, em seu alerta à ‘imperfeição da hereditariedade mista’”, observa
Lilia.
O médico alagoano Arthur Ramos, representante
do século XX, preferiu “dourar” a pílula do doutor Nina, modificando raça e
mestiçamento por cultura e aculturação. “Os problemas nacionais passam a ser
relidos à luz do referencial cultural, e não biológico. Assim, ao contrário das
mazelas dos genes, supostamente eternas, os da cultura eram alteráveis por
processos que mudassem hábitos sociais herdados”, explica Paixão. O racismo à
brasileira.
Do lado jurídico, Sílvio Romero,
de Recife, passou a defender que “o processo caldeador seria de importância
fundamental para a adaptação aos trópicos dos descendentes de europeus e,
assim, os eurodescendentes brasileiros, sem perder seus atributos originais,
incorporariam o legado dos outros grupos raciais, absorvendo suas melhores
qualidades”. Daí para o entusiasmo racial de Gilberto Freyre foi um pequeno
passo, cuja grande inovação, nota Paixão, foi valorizar as matrizes genéticas e
os hábitos culturais ordinários que formaram o povo brasileiro, sem perder
tempo com pudores de ordem ético-racial. O brasileiro agora deveria se orgulhar
de sua mistura.
Embora não seja um conceito
diretamente forjado por Freyre, logo se começou a falar, pelo globo, da
“democracia racial” brasileira, ainda que ela surja num momento em que nem
sequer democracia política existia no país. Em São Paulo, Florestan Fernandes,
irado com Freyre, retruca esse otimismo (em verdade, o autor de Casa-grande
& senzala não escondeu o sadismo que existia na relação entre escravos e
senhores, entre negros e brancos) com a tese de que a assimetria da escravidão
permaneceu a funcionar.
Segundo Fernandes, o processo de
modernização trouxera uma possibilidade de não efetiva realização de uma
democracia racial, já que o nosso modelo, como o da relação senhor-escravo,
permanecia dependente e periférico. Discriminar, longe de exceção, seria uma
tradição entre nós. Nos anos 1990 antropólogos como Lilia e Peter Fry vão
retomar de forma crítica o “mito da democracia racial”, valorizando, em
especial, o conceito de “mito”, já que não se podia acreditar na tal democracia
de raças. “Assim como não se pode negar o racismo, não se pode abrir mão de
falar das singularidades dessa sociedade misturada.
Não apenas a mistura biológica,
mas a miscigenação dos costumes e da religião”, escreveu Lilia. A democracia
racial é um mito, não há dúvida. “Mas o mito guarda uma importância por ele
mesmo, tendo em vista sinalizar um desejo coletivo, ausente de outras
realidades, onde a discriminação racial não faria questão de se manifestar de
forma velada. Considerando que toda sociedade se articula em torno de mitos de
origem (como o american way of life ou a liberdade, igualdade e fraternidade,
dos franceses), o da democracia racial seria apenas um entre outros”, avalia
Paixão. “Dessa maneira, se vai longe o contexto intelectual de finais do século
passado; se já não é mais cientificamente legítimo falar das diferenças raciais
a partir de modelos darwinistas sociais, a raça, porém, permanece como tema
central do pensamento brasileiro”, acredita Lilia.
Quando até a secretária Especial
de Política da Promoção da Igualdade Racial usa o “senso comum” para justificar
o racismo, o que se pode esperar da sociedade?
— Foi evidentemente uma
declaração infeliz. Mas é preciso desmontar o que há por trás do senso comum,
dessa fala que “aflora”. O racismo é sempre deletério. Ele impede que você
avalie uma pessoa, partindo de uma formação física, sobretudo da coloração da
pele, ou então que você atribua à coloração da pele uma explicação de ordem
biológica. O racismo é sempre uma perversão. Não há nada de natural nele, que é
uma construção cultural nascida das profundas diferenças sociais que nos
dividem. Eu acho correto que se recorra à história para tentar entender e
modificar esse panorama, formar uma política. Mas chamar de natural qualquer
tipo de racismo é fazer da história um campo de batalha ideológico. Não há
naturalidade aí. Acho que isso pode levar de fato a uma excitação, a um ódio e,
sobretudo, a algo que de que todos devemos discordar, que é transformar a raça
humana numa essência, numa realidade. Ela não é raça, é uma construção social e
política.
Como ciência e racismo se
relacionaram historicamente no Brasil?
— O Brasil é um país de
paradoxos, porque ao mesmo tempo que nós carregamos esse tremendo pessimismo,
que foi do século XIX até os anos 1930, depois convivemos com um grande
otimismo: raça sempre deu muito o que falar no Brasil, para o bem e para o mal,
como elemento de detração ou como elemento de positivação. Esse senso comum,
ele já foi ciência, ou seja, o preconceito já foi conceito. No final dos
dezenove, a ponta de lança científica brasileira e a internacional diziam que a
mistura de raças era prejudicial e que um país formado por raças muito
diferentes estava fadado à decadência. Nina Rodrigues, da Escola de Medicina da
Bahia, era o arauto dessa idéia. Ele mostrava, a partir da idéia de que a
esquizofrenia, a bebida, a loucura, inclusive as tatuagens, eram demonstrações
de que os indivíduos eram degenerados e que essa degeneração passaria para o
corpo da nação. Essa seria uma nação sem futuro. Essa visão não era só de
Rodrigues; nós a encontrávamos em Euclides da Cunha, cujo relato maravilhoso é
cheio de confrontos: o sertanejo é um desequilibrado, um degenerado, porque é
fruto de raças muito equilibradas e diferentes. Ao mesmo tempo, ele também é
“rocha viva, a rocha dura”. Euclides da Cunha não dá conta de que, nem por que,
enfim, esse mestiço sobrevive. Sílvio Romero, por exemplo, tem uma frase
sensacional que revela o espírito de época: “É preciso não ter preconceito. Os
homens são diferentes”. Então, nessa época, ter preconceito era afirmar a
igualdade. Agora isso virou um senso comum. Nos anos 1930 há uma exaltação
oficial da mestiçagem como nossa profunda singularidade, a saída que o Brasil
dará para o mundo. A ciência passa a deslegitimar a idéia de que a mestiçagem é
ruim. O senso comum assume isso também.
Essas teorias chegam aqui
“copiadas” ou passam por uma adaptação?
— O movimento no Brasil estava na
contramão, porque, no momento em que as teorias raciais viram a palavra de
ordem da ciência brasileira, estavam entrando em descrédito na Europa. E no
momento em que as teorias raciais passam a ser desacreditadas no Brasil, isso
já nos anos 1930, 40, na Europa elas voltam com força, com a questão do nazismo.
As idéias, quando entram nesse momento da história brasileira, e nessa
configuração social, política e específica, ganham uma nova dimensão e,
inclusive, na nova leitura, uma seleção. Afinal, uma coisa é pensar na eugenia
em povos não misturados, outra é a eugenia em povos já misturados, os chamados
de laboratórios raciais. Aqui, o que houve? Um casamento de teorias que em
outros lugares acabaria em desastre.
Claro que são as teorias do evolucionismo com as teorias mais deterministas
raciais, porque o determinismo racial supõe o quê? Não há como misturar. O
evolucionismo prevê o quê? A idéia de que certas misturas podem ser benéficas e
outras não. Há uma seleção. Não foi uma cópia, mas uma tradução.
Como entender as tentativas de
branqueamento da nação, por meio de imigrantes, separação de raças e outras
iniciativas?
— Essa saída, via branqueamento,
é um exemplo da solução à brasileira, porque não é dizer que o Brasil evitou o
branqueamento. Claro que não, porque há todo um movimento na Europa que prevê a
política da eugenia. Mas para poder aplicar a política de branqueamento num
contexto já “branco” é diferente de pensar em política de branqueamento num
país em que a população está africanizada. Já se pede uma política de
emigração. João Batista Lacerda, do Museu Nacional, vai participar do Congresso
Oficial das Raças. Naquele momento, vivemos no contexto do pan-americanismo, há
um receio político de que os Estados Unidos pratiquem uma política de invasão
dos nossos territórios e Lacerda leva como saída o branqueamento. Ele mostra
como, num estágio de cem anos, o Brasil seria branco, pela seleção natural e
pela implementação de políticas migratórias brancas. Para ter noção do “calor
da hora”, Lacerda é considerado pessimista, pois falou em um século, o que
seria demais para o branqueamento da nação. Isso sem esquecer de política de
migração implementada sobretudo por Pedro II. Pode-se entender a política de
migração, mas por que branca? A explicação está no conteúdo racial ideológico
dessa política. Há, por exemplo, um professor da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, Renato Kehl, que era partidário do modelo da África do Sul. Ele faz
um elogio à política sul-africana, que selecionava a migração, e emigrantes
brancos, e pede o movimento dos dois lados. De um, a emigração branca e
selecionada e, de outro, faz um elogio à esterilização de mestiços. Quer dizer,
o país da alentada democracia racial estava a um passo do apartheid social.
De que forma a raça foi usada
como forma de criar uma identidade nacional?
— Esse é um processo lento,
porque sabemos que nações são construções, projetos feitos de memórias. Como
dizia Walter Benjamin, “a memória é um passado feito de agora, repleto de
agora”. A memória é feita de algumas lembranças e de muitos esquecimentos. Um
processo de formação de uma memória nacional é um processo de esquecimento, de
seleções e de reelaborações. Até de uma literatura, como a de 1922, que mostrou
que criamos um Estado, mas não uma nação. A identidade, ela é uma construção
contrastiva e o material, o fermento da identidade, era a idéia da diferença.
Então era preciso fermentar essa noção da diferença. Esse bolo vai sendo
cozinhado durante o século XIX e a gestão de Pedro II é fundamental para
entender esse modelo de Brasil que vai se construindo. Pedro II não era grande
adepto dos modelos racialistas, mas não se pode dizer que não fosse
influenciado pela época, pois, lembrando Sílvio Romero, nesse momento, assumir
as diferenças era não ter preconceito. Daí a seleção do indígena como o ícone
da nacionalidade, embora o indígena romantizado. Essas teorias raciais
entrariam em fins do século XIX na Faculdade de Direito, na Faculdade de
Medicina, nos círculos militares. Mas foi no começo do século XX que esse
debate em torno da raça fica mais evidenciado. O interessante é que, para a
confirmação da identidade, a raça teve que ser positivada: assim como no
Império você positiva o indígena, no século XX, positiva-se a mestiçagem. A
mestiçagem de nosso profundo veneno se transforma na grande virtude: é o
momento em que você tem a oficialização da capoeira, a descriminalização do
candomblé, o futebol se transforma numa prática negra, Nossa Senhora Aparecida
se transforma numa santa mestiça, ícone nacional. Nos anos 1930 a raça vira de
fato um elemento da nacionalidade, mas como “a boa raça”, “a boa mistura”, e
uma mistura racial se transforma cada vez mais numa mistura cultural.
Como se pode reunir preocupação
com raça e racismo?
— Na verdade, não há uma solução
de continuidade. Pode parecer, pela etimologia, raça e racismo, que há, mas não
obrigatoriamente. Estávamos à beira de uma política de apartheid social, de
políticas raciais evidentes. Estávamos para implementar uma política oficial de
racialização, o que não aconteceu. Já o ideário modernista transformou o tema
da raça num tema da humanidade. A primeira definição de Macunaíma é um homem
sem raça; daí para o homem sem nenhum caráter é jogar a questão para o bojo da
cultura. O ideário modernista transformou raça, cultura em etnia e desfalcou o
tema para pensar de alguma forma em modelos de assimilação. A idéia modernista
de Macunaíma, daquilo que você deglute, do que você devolve, é um pouco essa
idéia de que você devolve o homem ao caldeirão de cultura. É claro que essa
noção, de alguma maneira, via o conflito, mas fazia o oposto. A vantagem da
literatura à Nina Rodrigues é que em nenhum momento ela camufla o conflito,
antes expõe diferença. O problema de Rodrigues não era o diagnóstico, mas o
remédio que ele implementava.
E sua idéia da “ilha de
democracia racial, cercada de racismo”, o brasileiro que só vê o racista no
outro?
— Arthur Ramos teria sido o
primeiro a falar de democracia racial, mas Freyre levou a fama. Mas é
preciosismo saber quem foi o primeiro, pois o tema estava na agenda nacional.
Tanto que encontrou lastro na discussão nacional, via Estado Novo, e ganhou
resultados fora do Brasil. Não se pode esquecer o impacto que essa idéia teve
no exterior, como no caso da pesquisa da Unesco que chamou o Brasil de caso
exemplar, uma grande democracia racial. A idéia do mito é forte e ganha
diferentes conotações. Quando falamos em mito, não é no sentido da mentira.
Hoje se pensa menos no que o mito esconde e mais no que o mito revela. Quando
se pensa na análise estrutural do mito, eles trabalham em espiral, falam entre
si e o tempo todo de elementos que estão aqui na nossa realidade social. Então,
eu penso que é preciso levar a sério o mito, porque ele já foi desmontado
muitas vezes e continua presente. O que significa levar a sério o mito? Não é
dizer “temos democracia racial”. Não, não temos. Praticamos uma política
perversa de exclusão e de discriminação. Então, não há a tal democracia social
ou racial, mas também não acho que devemos apostar em modelos de fora, análises
que dicotomizam a realidade entre negros e brancos. Talvez essa seja a
afirmação mais infeliz da ministra, aparada em modelos que não são os
praticados neste país. A mestiçagem é uma realidade, mas o problema não é a
constatação da mestiçagem, mas a qualificação positiva sempre da mestiçagem.
Mestiçagem não é sinônimo de igualdade. Mestiçagem não é obrigatoriamente
sinônimo de ausência de discriminação. É esse vácuo que me incomoda.
Podemos pensar, enfim, que ainda
se possa manter o conceito de raça?
— Raça não é uma realidade
ideológica, mas raça é uma construção, muitas vezes perversa, porque ela leva a
um campo de hierarquização. Dito isso, raça é uma construção, identidade também
é uma construção. Estamos nesse campo: identidade também não é uma construção
que se faz em contexto e com lutas sociais e com tensões sociais a todo
momento. Então seria preciso pensar por que é que no Brasil raça sempre foi
material para pensar em identidade e o que é que seria esse racismo à
brasileira. Eu acho que existe, sim, um racismo à brasileira, cuja grande
complexidade é que ele é uma idéia que é, sobretudo, de caráter privado. Isso
tem se alterado e muito. Esse racismo brasileiro ainda se manifesta na esfera
do privado, por conta da ausência de movimentos no corpo da lei. O que está havendo
é uma inversão. Estamos tentando colocar no corpo da lei políticas de
compensação, praticando políticas que de alguma maneira estão retornando e
racializando o debate. Esse racismo à brasileira é de caráter privado, por não
se manifestar no corpo da lei e por não se manifestar nas estâncias mais
oficiais. Além de tudo ele também é um racismo que sempre joga no outro a cota
de preconceitos. Pode ser o argentino, no caso do futebol. O lado bom do
momento em que nós vivemos é enfim que as pessoas estão passando a refletir
sobre essa questão. Não falar a respeito não significa que você não viveu o
problema. As pessoas negam e jogam no outro o racismo que na verdade é de cada
um.
O que acontece quando se junta a
questão racial à de gênero?
— Já é uma discriminação
duplicada. Não é a dupla jornada de trabalho, mas é a dupla jornada de
preconceito, porque se existe um leque de representações negativas com relação
ao malandro, ao mestiço, quando se refere à mulher, isso aumenta. A mulata é
palco para a idéia de que não é só a preguiça, mas os atos sexualmente
condenáveis; há a influência da prostituição, a traição, a mulata que é
matreira.
Enfim, como antropóloga, qual é a
sua visão do futuro do conceito de raça e do “ser brasileiro”?
— Nós acionamos várias brasilidades
dependendo do lugar, do momento e da situação, porque é um conceito baseado,
sobretudo contrastivo. A identidade se constrói pela imposição que ela
apresenta, pela posição que ela ilumina. Escrevi um artigo para um jornal de
Portugal sobre um jogo de futebol, em Paraisópolis, que se chama “Preto contra
Branco: é um jogo de futebol, no final do ano”. Nele as pessoas mudam de
posição: num ano jogam pelo Preto, noutro pelo Branco. Daí, você nota como,
primeiro, a identidade é uma questão circunstancial e raça, uma situação, no
senso comum, “passageira”. As pessoas “embranquecem”, “empretecem”. O que é uma
prova de como raça, não como um conceito biológico, mas raça como uma
construção social, continua a ser acionada no nosso imaginário. O que eu posso
dizer, sem medo de errar, é que as raças sempre deram o que pensar no Brasil,
porque, enfim, elas sempre acionaram, em momentos estratégicos, que a
identidade, também pensada como uma construção, é transformada num elemento
conformador de políticas públicas e de políticas de Estado.
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Matéria: O Racismo em Números
Link: http://www.cartacapital.com.br/revista/767/o-racismo-em-numeros-6063.html
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Matéria: O Racismo em Números
Link: http://www.cartacapital.com.br/revista/767/o-racismo-em-numeros-6063.html
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