Publicidade, Perversões e Fobias
Maria Rita Kehl
Fonte:
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Fetiches e Perversões
O casal jovem está sentado frente
a frente na mesa de um restaurante caro. A cena reproduz o tipo de encontro que
já está configurado no imaginário romântico de nossa época. É nas mesas de
bares e restaurantes, frente a frente, que as pessoas flertam, se declaram, se
encontram para conversar e namorar. Sabemos que o encontro amoroso, assim como
todas as relações humanas, é atravessado por alguns objetos: a decoração da
sala, a comida e as bebidas, as roupas e adereços dela e dele. O encontro
amoroso não acontece entre dois; ele é mediado pela linguagem, que se faz
presente também na forma de objetos que a cultura e a classe social consideram
adequados para a ocasião. Assim o vinho, os talheres, a música ambiente, a
comida e o preço da comida participam do encontro, demarcando e ao mesmo tempo
preenchendo um intervalo entre os parceiros. Este intervalo, esta
descontinuidade entre um e outro é que permite a circulação do desejo, como se
fosse – mas não é – o puro desejo de um pelo outro.
Na cena que descrevo, o rapaz
está tentando dizer algo à moça. Começa timidamente, hesita – o espectador
percebe que ele esboça um pedido de casamento. Mas o olhar da moça é distante.
Custamos a interpretar seu sorriso de polida indiferença, até que a câmera faz
um giro e conduz nosso olhar para fora da janela, para onde o olhar da moça se
dirige. Lá está um carro novinho, de cuja marca não me lembro (mas sei que é
vermelho). Quando o noivo, cada vez mais embaraçado, termina seu pedido ela cai
em si e pergunta: “desculpe, o que você dizia...?” A ironia é confirmada pela
voz do locutor que alerta os espectadores para o objeto que realmente interessa
às moças casadoiras. Se o rapaz não puder oferecer a ela o carro x, desista da
empreitada.
O carro introduz-se entre os dois
namorados não como um objeto a mais entre os outros – vinho, talheres,
cardápio, preço – uma série cujos elementos podem sempre ser substituído por
outros. Nessa propaganda, o carro não é um entre os muitos objetos mediadores
do desejo (sexual); é ele, este artefato mecânico revestido de lata e tinta
brilhante, que se instala no lugar de um dos parceiros como se fosse o próprio
objeto do desejo. Se os outros acessórios fálicos recortam o lugar da falta a
partir do qual o desejo circula, o carro x, que desvia a atenção da mulher no
momento em que o homem lhe pede que seja sua esposa, está no lugar (imaginário)
do objeto (simbólico) do desejo. Agora, o homem é que ocupa o lugar acessório;
casar-se com ele seria, para ela, apenas um meio de acesso ao gozo/carro. O
homem tornou-se supérfluo diante do único bem que interessa à moça de maneira
absoluta. O carro é o objeto irrecusável do desejo, tanto dela quanto do
espectador, convocado a identificar-se não com o olhar ingênuo do moço, que
ignora o que sua noiva vê, mas com o olhar indiferente e sonhador dela, focando
o carro zero estacionado do lado de fora. Ao contrário da mulher freudiana,
esta personagem publicitária sabe exatamente o que quer; diante disso o
pretendente, que lhe oferece o pobre substituto de um compromisso de amor, faz
papel de otário.
Como bem lembrou Eugênio Bucci em
vários de seus artigos sobre televisão para a Folha de São Paulo e o Jornal do
Brasil, o apelo psicológico comum a todas as formas de publicidade visa à
dinâmica da inclusão e da exclusão. A publicidade, escreve Bucci, vende sempre
a mesma coisa: a proposta de uma inclusão do sujeito às custas da exclusão do
outro. A identificação do espectador como consumidor do produto que se
apresenta como capaz de agregar valor à sua personalidade promove sua inclusão
imaginária no sistema de gosto, na composição de estilos, que move a sociedade
de consumo. Goza-se com isso: não tanto da própria inclusão (que pode não
passar de uma fantasia), mas da exclusão do outro. O que a publicidade vende,
portanto, é exclusão. Não é imprescindível que a exclusão de seja de classe,
como ocorre em outro anúncio em que os meninos de rua que pedem para tomar
conta e limpar os carros ao preço de um real brigam pelo privilégio de polir o
modelo top de linha de um feliz playboy que acabou de estacionar. A exclusão
pode ser de estilo. Durante a copa, um comercial de cerveja mostrava um
torcedor que errou ao oferecer uísque em vez de Skol aos amigos que foram
assistir ao jogo em sua casa. Diante da gafe imperdoável, foram todos tomar a
cerveja certa no bar ao lado, excluindo o anfitrião da alegria coletiva. Não
foi uma troca de produto – a cerveja pelo uísque – mas de companhia. O uísque,
bebida errada na hora errada, desqualificou o anfitrião perante seus amigos.
Este mostrou-se tão otário quanto o pretendente da moça do primeiro comercial
que não entendeu qual seria o verdadeiro objeto da sua paixão. É óbvio que a
relação que se estabelece é entre as pessoas e as coisas. Ou entre as próprias
coisas, que se relacionam, se avaliam e se atribuem significações na medida em
que as pessoas (reduzidas a consumidores) se perfilam diante de suas marcas.
Aquela mulher que sabe o que
quer, no entanto, não é o mestre do gozo na pequena peça publicitária que escolhi
para abrir esse artigo. Se ela sabe que quer é porque um outro, em posição de
mestria, lhe apresentou um objeto imperativo da satisfação garantida. Para nós,
espectadores, o mestre é o publicitário. É ele quem dirige nosso olhar para o
objeto que atrai o olhar dela. É ele quem promove a iniciação dos sujeitos
desejantes, convocados desde o lugar de consumidores, em relação às
possibilidades de gozo em circulação no mercado. Mas para a personagem do filme
de propaganda, no qual a autoria do publicitário está elidida, o objeto do
desejo se apresenta por conta própria, como por obra dos deuses do acaso. Ele
entra em cena através de um giro da câmera que conduz, “naturalmente”, o nosso
olhar; está ali, na calçada fora do restaurante, para que a moça reconheça em
suas formas, em sua cor vermelha, mas acima de tudo na marca de fabricação, o
objeto inquestionável do desejo.
Os deuses do acaso dispõem as
mercadorias em circulação no mundo contemporâneo como o antigo Deus cristão
dispunha das forças da natureza para abençoar ou castigar seus fiéis. Uma nova
versão imaginária do Outro ocupa o lugar – lugar de um Ser onipresente,
onisciente e onipotente – deixado vazio quando parte da humanidade deixou de
orientar suas escolhas a partir da crença no Deus judaico-cristão. Um Outro que
enuncia o que deseja de nós e promete suas bênçãos para aqueles que melhor se
dispuserem a atender suas demandas. Este Outro pode ser, simbolicamente, o
Mercado, filho enviado à terra por seu Pai, o Capital – abstrações sem nome e sem
rosto que determinam nosso destino e, de um lugar simbólico fora do nosso
alcance, nos submetem às leis inflexíveis do seu gozo. Pautar escolhas de vida
segundo os ditames do Mercado, ou do Capital, para a maioria das pessoas parece
mesmo uma questão de fé. Mas este novo Deus laico cuja face ninguém vê enuncia
seus desígnios através da palavra revelada a seus sacerdotes; digamos que estes
sejam os mestres da publicidade. São eles que exibem as imagens espetaculares
de Deus [1] no altar onipresente da televisão.
Se o Outro é uma instância
simbólica para a qual cada sociedade inventa uma versão imaginária, hoje o laço
social é organizado com referência a um Outro emissor de imagens que se
oferecem à identificação e apelam ao gozo sem limites. A televisão ocupa, para
o psiquismo, um lugar equivalente ao de um mensageiro de Deus. A psicanalista
Marie-Hélène Brousse, ao falar sobre a dimensão política do inconsciente [2] ,
recuperou uma conferência de Lacan de 1947 em que ele se dizia preocupado com a
expansão da cultura industrializada que vinha promovendo meios de agir sobre o
psiquismo através de “uma manipulação combinada de imagens e paixões [3] ”. Nos
quase sessenta anos que se seguiram a esta conferência, os artifícios dessa
manipulação de imagens e paixões não pararam de se aperfeiçoar.
Voltando ao anúncio que descrevi
no início desse artigo: a imagem de um objeto se apresenta, entre o homem e a
mulher, como condição indispensável para fazer existir a relação sexual. Sua
presença promete realizar a fantasia impossível de perfeita complementaridade
entre o moço e a moça. Instaura-se entre os espectadores a crença na existência
de um objeto capaz de acionar o desejo sexual obturando a descontinuidade entre
os parceiros; através dele, homem e mulher convergem para um mesmo ponto, no
qual se encontram e se completam. Além disso, já que se trata de um objeto
inquestionável, sua imagem tem o poder de apagar todas as diferenças entre os
sujeitos que o cultuam.
Fetiche em Freud e Marx
Este objeto é o fetiche, conceito
compartilhado pela psicanálise de Freud e o materialismo histórico de Marx. Em
cada um desses autores o conceito de fetiche opera como analisador de uma
dimensão das relações humanas: a sexualidade (em Freud), a exploração do
trabalho (em Marx). Entre o marxismo e a psicanálise, a essência da idéia de
fetiche – cuja origem remonta à adoração dos ícones sagrados em algumas
religiões antigas – é a mesma, mas os campos onde o conceito opera são
diferentes. O que pretendo discutir é que na sociedade contemporânea, as duas
dimensões do fetichismo coincidem: o fetiche que apaga a diferença sexual
encarna-se no fetiche da mercadoria, condição da circulação do que imaginamos
ser a riqueza (expressa através das mercadorias) na sociedade moderna.
Em Freud, o fetiche é o objeto
capaz de encobrir a falta já percebida pelo sujeito, inaugurando neste a
possibilidade de sustentar, diante das evidências da castração uma dupla
atitude – de saber e negação do saber – que pode ser resumida na formulação:
“eu sei, mas mesmo assim...”. Por um lado, a dupla atitude diante da castração
revela que, embora o sujeito tenha sido barrado pela Lei, as representações
edipianas não sucumbiram todas ao recalque. Por outro lado, a posse do
objeto/fetiche garante ao perverso uma via para o gozo sexual que dispensa a
diferença, ou seja, a castração. O perverso fascina a histérica porque se
apresenta diante dela como um mestre do gozo – um que conhece as condições de
seu gozo e instrumentaliza o outro para que componha a cena de que ele necessita.
Nos casos analisados por Freud a
fixação ao objeto fetiche como regulador das práticas sexuais perversas era
mantida na privacidade que caracterizava (pelo menos até o início do século XX)
os segredos de alcova. O perverso freudiano era perverso nos atos privados que
diziam respeito à sua vida sexual. Esse limite da atuação perversa nos permite
questionar o preconceito que incide sobre os perversos, inclusive em função do
sentido moral que o significante “perversão” herdou do senso comum – onde perversidade
é sinônimo direto de maldade. O caráter desviante, fora da norma, da
sexualidade perversa, não nos autoriza a alinhar automaticamente as práticas
perversas a uma estrutura psíquica mais propensa ao mal do que as estruturas
neuróticas.
No capítulo dedicado às
“aberrações sexuais”, em “Três ensaios para uma teoria sexual [4] ” de 1905,
Freud concebe a perversão como permanência da sexualidade infantil na vida
adulta. A perversão é o infantil na sexualidade. Aqui encontramos também uma
pista para a diferenciação posterior feita por Lacan, entre as práticas
perversas isoladas e a perversão como estrutura. Além disso, Freud afirma que a
maioria das práticas perversas integra a sexualidade normal.
“Em nenhum homem normal falta a
agregação de caráter perverso ao fim sexual”.
Pela mesma razão, Freud recusa-se
a condenar moralmente as práticas perversas.
Outra passagem que nos leva a
repensar a moralização da perversão é a afirmação de que o sintoma é a vida
sexual do neurótico, e expressa a recusa do neurótico em tornar pensáveis suas
fantasias sexuais. “Os sintomas não se originam dos impulsos sexuais normais
(no neurótico), mas dos que se consideram perversos no sentido amplo da palavra
e se exteriorizam direta e conscientemente em propósitos fantasiados ou em atos. Os sintomas se
originam, em parte, às custas da sexualidade normal. A neurose é, por assim
dizer, o negativo da perversão. [5] ”
O exemplo de neurose como
negativo da perversão que Freud utilizou para ilustrar esse argumento é o das
conexões da libido com a crueldade – no neurótico, que recalca as
representações associadas ao desejo, a crueldade é freqüentemente atuada na
forma de sintoma, sem que o sujeito consiga responsabilizar-se por ela. Nos
perversos, integra-se ao erotismo. Neste sentido não há por quê considerar que
os perversos seriam moralmente mais condenáveis que os neuróticos. É verdade
que o artifício do fetiche funciona, nas perversões sexuais, para recusar a
diferença entre os sexos que se manifesta, para o menino/homem, através da
falta fálica aparente nos genitais femininos. Nem por isso podemos considerar
que a diferença sexual (que remete à angústia de castração) seja mais
intolerável para o perverso, que a recusa, do que para o neurótico, que a
recalca. Com isso quero lembrar que o conceito de perversão, em psicanálise,
não aponta necessariamente para um sintoma que afete o laço social. A leitura
do Seminário 4 [6] de Lacan nos faz compreender que perverso não se exclui da
Lei. Tanto quanto o neurótico, o perverso é um sujeito barrado que não quer
saber disso; assim como o sintoma neurótico, o fetiche do perverso é um
artifício para driblar as evidências da castração que já ocorreu, na passagem
pelo Édipo. A diferença é que o recalque tem um papel menos determinante na perversão.
Em Marx, o conceito de fetiche
(da mercadoria) remete ao brilho da imagem/mercadoria produzida nas condições
do trabalho alienado sob o capitalismo industrial; o fetiche da mercadoria
também encobre a dimensão da falta, se considerarmos que encobre o conflito que
existe em sua origem, isto é: uma relação de exploração entre pessoas, no
processo de sua produção. Uma relação entre pessoas é entendida pela sociedade
como uma relação entre coisas, escreve Marx. A expropriação de tempo da vida do
operário cedida gratuitamente ao capitalista na forma da mais valia é entendida
como produção de riquezas. Também para o fetichista freudiano, a relação com o
objeto/fetiche elimina a dimensão de alteridade aportada pelo corpo do outro
(seja homem ou mulher).
A passagem do uso do conceito de
fetiche em Freud para a teoria de Marx revela que a regulação fetichista das
relações entre as pessoas, nas sociedades capitalistas, deixa de ser uma
exceção perversa para se tornar uma regra. Em uma sociedade de mercado, o fetiche
da mercadoria é um dos principais organizadores do laço social. Mas a diferença
que o fetiche da mercadoria apaga não é (exclusivamente) sexual; ele apaga a
diferença entre o capitalista e o trabalhador, entre quem vende e quem compra
força de trabalho, entre quem lucra e quem cede mais valia. A mercadoria que
brilha como pura positividade, como máxima expressão de riqueza, é um fetiche
em função de sua capacidade de ocultar a miséria, a exploração e a morte
investidas em seu corpo. Nas sociedades de consumo, o fetichismo é a
normalidade. De uma forma ou de outra, em nossa religião cotidiana,
participantes do sistema mágico que explora o trabalho como se isto fosse um
bem, somos todos adoradores dos bezerros de ouro.
Nesse caso, poderíamos considerar
que a sociedade seria toda perversa? A moça que se casa com o carro (aceitando
o noivo como condição do contrato) poderia ser considerada, freudianamente, uma
perversa? Penso que não. A personagem do esquete publicitário, que poderia ser
qualquer um de nós, não possui a mestria que caracteriza o perverso, sobre as
condições de seu gozo. Estas lhe são apresentada por um Outro, a cuja
convocação ela apenas obedece. Ela seria presa da alienação que faz seu desejo
responder ao desejo de um Outro. Nossa noiva ficcional se parece mais com uma
histérica, submetida ou seduzida pelo mestre perverso que dita as regras do que
ela deve ter para ser. Ao final desse jogo quem há de gozar não será a noiva,
de posse do carro cobiçado. Ela há de ter, é claro, sua pequena dose de prazer.
Depois, a inevitável insatisfação a levará a desejar outro modelo de automóvel,
e mais outro, e mais outro. “Eu sou aquela que você diz que eu sou”, diz a
histérica a seu mestre, condenando a si mesma à eterna insatisfação, uma vez
que nenhuma resposta vinda de um outro será capaz de obturar o furo no ser. O
que a dependência do mestre (re)produz, para a histérica, é a alienação que a
separa cada vez mais de seu saber inconsciente. “A histeria é a doença do
capital”, escreve Roy Schutzman [7] . Sob o capitalismo consumista, a
feminilidade será embalada com os objetos que o mestre ordena que a histérica
possua para ser – o que? Para ser, também ela, mercadoria em oferta ao gozo
masculino. Disso a histérica há de gozar um pouco, mas nunca tanto quanto seu
mestre, que na sociedade de consumo domina as regras do jogo perverso. Quando o
mestre perverso domina o neurótico, é seu próprio gozo que ele trata de
garantir. Nosso gozo fugaz de neuróticos submetidos às leis do mercado,
embasbacados pelo brilho fetichista das mercadorias, serve ao Capital, único
senhor cujo gozo não encontra limites.
A histeria é a doença da fase
consumista do capitalismo, como a neurose obsessiva foi a doença da fase
produtivista, que inclui a era freudiana. Entre o século XIX e a primeira
metade do XX as sociedades industriais funcionariam segundo o modelo da neurose
obsessiva. Grosso modo, diria que quando Freud criou a psicanálise, o
imperativo moral apontava para o sacrifício e a renúncia pulsional. Cada
geração tentava honrar sua dívida em relação ao patriarca, dívida cada vez mais
difícil de pagar na medida em que a autoridade patriarcal ia sendo relativizada
pelo liberalismo; assim, a dívida simbólica se manifestava como culpa
neurótica. Na era freudiana a neurose obsessiva seria a norma, e a histeria
surgiu como expressão emergente de mal estar, manifestamente entre as mulheres.
O que ocorre com os neuróticos,
individualmente, quando em vez da neurose obsessiva, é a perversão que dita as
condições do laço social? A paixão da instrumentalidade é a via para se
entender os efeitos da perversão social sobre o neurótico. Trata-se da servidão
voluntária do neurótico, capaz de fazer qualquer coisa para se colocar a
serviço do gozo de um Outro. Sabemos até que ponto é possível a um mestre
perverso submeter os neuróticos comuns. A adesão de grandes contingentes da
sociedade alemã ao projeto de extermínio dos judeus, orientado por uma pretensa
racionalidade técnico-científica e coordenado por uma Leviatan maligno, é prova
do que os neuróticos são capazes quando são convocados por um Mestre perverso.
Mas a perversão, no laço social, não produz sujeitos perversos. Produz
neuróticos, aprisionados em sua paixão por se fazer instrumentos do gozo do
Outro.
Na sociedade contemporânea em que,
de maneira muito mais radical do que quanto Marx escreveu O Capital, todas as
relações humanas são mediadas pela mercadoria – hoje, sob a forma predominante
da mercadoria imagem – o laço social pode ser considerado perverso. Nesse caso,
seríamos todos perversos? Muito pelo contrário: somos todos neuróticos
submetidos, instrumentalizados para manter a condição fetichista da ordem
social. A proposição freudiana da neurose como negativo da perversão favorece
esta segunda hipótese. Como neuróticos, tentamos obter sob a forma sintomática,
a partir de motivações inconscientes, o mais-de-gozar (ou a mais valia) que o
perverso sabe conseguir na sua vida erótica.
A neurose é o negativo da
perversão. Assim como o negativo de um filme contém as mesmas imagens foto
revelada, a neurose mantém recalcadas, inconscientes, as representações do gozo
sexual que o perverso conhece e revela. Neste sentido, o que o perverso realiza
na privacidade de sua alcova pode ser menos problemático, do ponto de vista
ético, do que a satisfação que o neurótico obtém através do sintoma, já que o
sintoma está sempre articulado ao Outro e portanto, ao laço social. Mas é por
isso mesmo que o neurótico pode ser facilmente instrumentalizado pelo perverso
quando este se oferece a ele como mestre que conhece as condições de seu gozo.
Se o publicitário, munido das
mais avançadas técnicas de pesquisa de mercado, sabe perfeitamente o que quer
conseguir de seu “público alvo”, é ele quem está em posição de mestre do gozo
em relação aos neuróticos que fazem (o que o Outro manda) sem saber o que estão
fazendo. As eficientes técnicas de sondagens das motivações, tendências e
demandas emergentes do público consumidor colocam ao alcance dos publicitários
um saber que os tornam capazes de agenciar as motivações inconscientes dos
consumidores e responder a elas com um produto, uma imagem, uma marca. No
estágio atual do capitalismo, que poderíamos chamar, com Débord, de estágio
espetacular, a alienação analisada por Marx vem se aperfeiçoando na medida em
que o inconsciente trabalha para a acumulação de capital: com isso a servidão
se torna cada vez mais voluntária.
O libertino e o tênis Nike.
O convite à perversão nas
sociedades de consumo contemporâneas, regidas pelo imperativo publicitário do
gozo – “tudo ao mesmo tempo agora” – parece uma caricatura das fantasias
eróticas do Marquês de Sade. Sade queria um Estado republicano onde o gozo
fundamentasse a Lei. A libertinagem no século XVIII é indissociável de uma
utopia republicana pós-iluminista que visa libertar o homem da tutela da
religião, do temor a Deus, da coerção das instituições e da autoridade do
Monarca. No famoso libelo que se abre com a frase: “Franceses, ainda mais um
esforço se quereis ser republicanos” pronunciado por Mirvel em A filosofia na Alcova,
Sade propõe a criação de leis que invertam os termos da legalidade reinante e
façam ... “a tranqüilidade e a felicidade do cidadão e o brilho da república”
[8] . Na república libertina o maior crime seria resistir aos impulsos que a
“natureza” (conceito caro aos herdeiros das Luzes) inspira ao homem. O ideal
sadeano seria radicalmente o avesso do bom comportamento do neurótico: tudo que
este recalca, aquele elegeria como ideais de eu. Dentre as paixões liberadas
por este ideal, nenhuma exige maior liberdade do que a luxúria, a paixão mais
despótica que existe, cuja realização requer que todos tenham o direito a gozar
sobre todos, livre e indiscriminadamente.
Lacan apontou a impossibilidade
de realização desse projeto, em “Kant com Sade”: o imperativo do gozo que rege
a república sadeana seria a contrapartida do imperativo categórico kantiano,
tributário do paradigma iluminista da universalidade da razão. O paradoxo
libertino é que em Sade o princípio universal é justamente o egoísmo. Ele tenta
fundar uma Lei categórica contra o caráter universal da Lei, que consiste
exatamente em agir de tal forma a que o princípio de sua ação possa ser
aplicado a todos os outros homens. Se a Lei kantiana pressupõe um homem que não
desvie do conceito universal de Homem, a Lei em Sade privilegia a
singularidade: uma Lei que se prestasse a ser interpretada de acordo com as
conveniências de cada um. Para Sade, sendo os homens diversos entre si e
fundamentalmente egoístas, “seria um absurdo palpável desejar prescrever, a propósito,
leis universais. (...) É de uma horrorosa injustiça exigir que homens de
caráter desiguais se submetam a leis iguais”. O paradoxo é que o imperativo
universal do gozo – gozo que, pela própria definição de Sade, é individual,
instauraria no coração da república libertina uma luta sem lei de todos contra
todos, destruindo a própria utopia libertária enunciada em sua origem.
No entanto, esta utopia está mais
próxima da vida contemporânea do que o próprio Marques poderia imaginar. No
texto dedicado aos libertinos, em A dialética do esclarecimento, Theodor Adorno
aproxima a república de Sade da vida contemporânea ao nos fazer compreender que
a economia do gozo no projeto libertino é uma antecipação do cálculo burguês. O
libertino antecipa o homem da sociedade liberal, capaz de adaptar o universal
da Lei a seus propósitos privados e calcular a economia de seu gozo de modo a
obter do corpo do outro o maior rendimento com o mínimo de esforço e sem nenhum
sacrifício. Se o projeto libertino anuncia o que viria a ser a economia do gozo
na cultura burguesa que se consolidou no século seguinte ao de Sade, isto
significa que a perversão veio a se instalar no cerne das práticas que
organizam o laço social na modernidade.
A passagem da fase produtiva para
a fase consumista do capitalismo representou mais um avanço na direção da
análise de Adorno. Hoje vemos aproximar-se a realização o delírio sadeano de
uma república regida pelo imperativo do gozo. Na fase consumista do capitalismo
contemporâneo a verdadeira mola do poder não é mais a repressão dos
representantes pulsionais, mas a administração do gozo. É que depois de Adorno,
o sistema se aperfeiçoou. Se os capitalistas dos primeiros tempos substituíram
os personagens de Sade em seu poder de fazer o corpo do outro trabalhar para
seu usufruto, os consumidores da modernidade tardia sentem-se todos, sem
exceção, convocados a gozar da exploração concentrada no corpo das mercadorias.
Além disso, a proliferação da mercadoria-imagem consolida a “democratização” do
gozo uma vez que, se poucos têm acesso à posse das mercadorias, todos podem ter
acesso ao gozo das imagens. Nesse caso a publicidade, que também é mercadoria,
trabalha nas duas pontas da cadeia significante do fetichismo: de um lado, como
série repetitiva de enunciados do mestre perverso que convoca os sujeitos –
tornados histéricos por efeito dessa operação – a se identificar com os objetos
de gozo que lhes oferece. E de outro como pura imagem de gozo, puro fetiche,
ela própria uma mercadoria incluída na circulação dos produtos da exploração do
trabalho alienado.
Entre os muitos recursos
utilizados pela publicidade, a pornografia faz parte dos discursos circulantes
e das mercadorias consentidas socialmente; o sexo se transformou em grande
força econômica, ao mesmo tempo em que assistimos ao desaparecimento dos
saberes eróticos, na linha apontada por Foucault: as ciências sexuais
substituíram progressivamente na modernidade, a arte Erótica da antiguidade e
do Oriente. Hoje, o lugar moral que era reservado ao sexo até metade do século
XX foi ocupado pela cultura das “sensações corporais” e das tecnologias da
saúde, enquanto as mais variadas imagens da cópula se oferecem a quem circula
nas ruas, a quem assiste televisão ou lê jornais, como pequenas amostras-grátis
que antecipam o gozo associado às imagens das mercadorias.
Além disso, a fantasia da Lei
interpretada de acordo com o gosto de cada um, proposta pelo marquês de Sade,
parece se realizar no “individualismo de mercado” que promete uma versão
particular do gozo para cada consumidor. Os objetos de consumo se apresentam
como substitutos materiais, inscrito no corpo Real das coisas, do objeto
simbólico do desejo. Retrocedemos, assim, da economia simbólica do desejo para
o império das necessidades. A força da coerção pulsional se precipita diante
dos objetos de (suposta) satisfação que se oferecem como pura extensão do Real
– como o carro vermelho disposto, por obra dos deuses do acaso (ou da
natureza), bem no campo de visão da moça, na peça publicitária que analisei no
começo desse artigo.
O imperativo do gozo, expresso na
mensagem no limits que identifica uma simples marca de tênis, propõe que cada
sujeito, individualmente, alcance para si um lugar acima dos outros, à margem
da Lei. “Seja um tiger”, ordena um outdoor que oferece não me lembro qual
produto para aumentar as chances dos mais aptos (ou dos mais espertos) na selva
darwiniana da concorrência instituída pela acumulação de capital. Um tiger, o
predador mais forte e mais voraz diante do qual todos os outros devem se
intimidar.
A repetição incansável desse tipo
de apelo faz-nos perceber a vida social como cada vez mais ameaçadora. Os
significantes mestres, que são dispositivos reguladores do gozo, vêm se
desdobrando em torno de mandatos da ordem do no limits. O efeito disso é um
horizonte dominado pelo fantasma da regressão a uma ordem primitiva incapaz de
impedir o acirramento da luta de todos contra todos.
[1] - “O espetáculo é o Capital
que apenas se olha”, escreveu Guy Débord em A sociedade do espetáculo..
[2] - Marie-Hélène Brousse, O
inconsciente é a política (2003) Seminário editado pela Escola Brasileira de
Psicanálise, São Paulo.
[3] - Essa conferência, que data
do pós guerra, foi pronunciada na Inglaterra no mesmo ano em que Adorno escreveu o
texto antológico sobre a Industria Cultural.
[4] - Freud, “Três ensaios para
uma teoria sexual”(1905) em: Obras completas vol.II. Biblioteca Nueva, Madri,
1976, pp. 1179-1237. Tradução de Luíz Lopes Ballesteros.
[5] - pp. 1189-1190.
[6] - Lacan, O Seminário 4 – as
relações de objeto (1956-57). Rio de Janeiro: Zahar, 1995, versão brasileira de
Dulce Estrada..
[7] - Roy Schutzman, The real thing:
performance, hysteria and advertising. Londres, University Press of New
England, 1999.
[8] - Marquês de Sade, A filosofia
na alcova (1795). Salvador: Ágalma, 1995. Tradução e apresentação de Eliane
Robert de Moraes. P. 192.
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