Documentos - Excerto da obra Discurso sobre a servidão voluntária de Etienne de La Boétie

Esta é a edição do livro que eu mais gosto.
Textos Iluministas
BOÉTIE, Etienne de La. Discurso sobre a servidão voluntária.

(...) Não há dúvidas, pois, de que a liberdade é natural e que, pela mesma ordem e de idéias, todos nós nascemos não só senhores da nossa alforria, mas também com condições para a defendermos.

Se acaso pusermos isso em dúvida e descermos tão baixo que não sejamos capazes de reconhecer qual o nosso direito e as nossas qualidades naturais, vou ter de vos tratar como mereceis e por os próprios animais a dar-vos lições e a ensinar-vos qual é vossa verdadeira natureza e condição.

Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais: viva a liberdade! Muitos deles morrem quando os apanham. Como o peixe que, fora da água, perde a vida, também outros animais se negam a viver sem a liberdade que lhes é natural.

Se os animais estabelecessem entre si quaisquer grandezas e proeminências, fariam (creio firmemente) da liberdade a sua nobreza.


Alguns há que, dos maiores aos menores, ao serem presos, opõem resistência com as garras, os chifres, as patas e o bico, demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida. E uma vez no cativeiro, dão evidentes sinais do conhecimento que têm da sua desgraça e deixam ver perfeitamente que se sentem mais mortos do que vivos, continuando a viver mais para lamentarem a liberdade perdida do que por lhes agradar a servidão.

O que quer dizer o elefante que, depois de se defender até mais não poder, sentindo-se impotente e prestes a ser apanhado, espeta as presas nas árvores e as quebra, assim mostrando o grande desejo que tem de continuar livre como nasceu?

Assim dá a entender que deseja negociar com os caçadores, dando-lhes os dentes para que o soltem, entregando-lhes o marfim em penhor da liberdade.

Começamos a domesticar o cavalo, desde o momento em que ele nasce, preparamo-lo para nos servir e não podemos glorificar-nos de que, uma vez domado, ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos, como se (assim parece) quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir.

Que dizer perante isto? Que
Até os bois sob o jugo andam gemendo
E na gaiola as aves vão chorando

como escrevi no tempo em que versejava à francesa (não receio, escrevendo-te me particular, citar versos meus, coisa que nunca faço; como tens mostrado gostar deles, não me acusarás de ser pretensioso).

Todas as coisas que têm sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade; as alimárias, feitas para servirem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários.

A que azar, pois, se deverá que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar? (...)

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